A legalização da maconha no Uruguai

A legalização da maconha no Uruguai: post polêmico, mas um assunto frequente.

Nas minhas idas ao Brasil chegava a ser engraçado o tom curioso que sempre me perguntavam 'é verdade mesmo que é liberado?' e até pouco tempo atrás a quantidade de e-mails que recebia com uma interpretação totalmente equivocada da lei era enorme. 

Todo mundo aparecia com planos e mais planos de negócios espetaculares com a erva no Uruguai, pouca gente se dava o trabalho de ler a lei, mas já queria saber quanto custava um ponto na capital e o passo a passo - detalhado - de toda a burocracia para abrir um coffee shop. 

A ideia que pairava era basicamente: vamos vender crazy cake, uns cigarrinhos, fazer uma grana e ser feliz num lugar livre e pra frentex! E né? Não é desse jeito que a banda toca. 

Esperei a poeira baixar para poder tocar nesse tema aqui no blog. Primeiro porque de verdade nada mudou na minha rotina de moradora. Nada. Depois porque estava com preguiça da língua afiada da turma que se sente ofendida pela legalização. 

Fato é que o Uruguai ganhou as manchetes de todo o mundo com a implementação da lei número 19.172 (e posteriormente do decreto 120/014), o país ousou na iniciativa de regular todo o processo produtivo da cannabis, dispondo sobre o plantio, cultivo, distribuição, venda e consumo.

Foto Marcelo Bonjour / El Pais Uruguay


A discussão em solo nacional sempre foi polêmica, nunca houve um consenso. O Senado aprovou a lei numa disputa apertada: 16 votos contra 13.

A população assistia aos debates um tanto quanto perdida, ninguém sabia direito o que efetivamente esperar após as mudanças legais, pesquisas feitas na época - no ano de 2013 no caso - mostravam que 66% dos cidadãos uruguaios eram contra essas medidas.

Um número expressivo, visto que mais da metade dos uruguaios não enxergavam a lei como positiva para a realidade do país.  Além do conservadorismo presente, haviam muitas perguntas sem respostas no tocante ao controle, segurança e dinâmica da produção.

Mas quem assistia de fora facilmente se iludia com a figura romântica da Amsterdam das Américas. E não, amigo turista, já adianto que a lei não confere privilégios para a sua condição de visitante. Em outras palavras, a lei não permite que você chegue aqui e compre tranquilamente maconha na rua, na chuva ou na fazenda.

Para o turista, vale a pena destacar três pontos importantes:

  • O consumo regulamentado é exclusivamente para uruguaios ou residentes permanentes maiores de 18 anos. 
  • Mesmo sendo uruguaio ou residente, quem compra precisa estar previamente cadastrado no sistema de usuários. 
  • A venda quando ocorre é feita unicamente nos estabelecimentos autorizados pelo governo.

Resumindo, se alguém te vender um cigarrinho na rua já é outra coisa, não faz parte do pacote legal e comprar é por sua conta e risco. 

E para quem vive aqui (e cumpre com os requisitos da lei, claro) é fácil ter acesso a maconha legalmente? Sim, a burocracia é praticamente inexistente para se cadastrar.

A lei criou o Instituto de Regulação e Controle de Cannabis (o IRCCA) responsável por regular as atividades do processo de produção da erva, outorgar licenças, criar registro de usuários, autorizar os clubes de usuários de maconha (chamados clubes de membresía), registrar as declarações de auto cultivo, dentre outras atribuições.

São três formas possíveis para adquirir a maconha no Uruguai: sendo membro de um clube registrado, cultivando a própria planta em casa ou comprando nas farmácias habilitadas.

As vendas em farmácias ainda não foram iniciadas, e acreditem, houve muita dificuldade para encontrar interessados em todo o país: apenas 50 (cinquenta!) locais se inscreveram dentre os 1.200 existentes.

Os donos de farmácias alegam não haver segurança suficiente para vender maconha nos seus estabelecimentos e temem conflitos com os traficantes dos bairros, outros não querem arriscar perder a clientela que não apoia essas medidas e há ainda quem declare conflitos éticos. 


Em meio a esse cenário, o início das vendas está previsto para esse segundo semestre de 2016. Estima-se que o governo venderá cada gramo a 0,90 centavos de dólar e as farmácias poderão agregar até 30% sobre esse valor na venda ao cliente final, ou seja, o gramo na farmácia será vendido por aproximadamente 1,17 dólares (quase 4 reais).

A lei prevê limites para o consumo que vão desde o número e tipo de plantas que cada usuário registrado pode ter, a quantidade mensal que se pode comprar nas farmácias (10g semanais e até 40g por mês), o número de membros mínimo e máximo para cada clube (15 e 45, respectivamente).

Comentei lá no início do texto que nada mudou na minha rotina e repito para responder uma pergunta que também sempre me fazem: e aí depois que liberaram virou bagunça? Tem gente drogada em todos os lugares? 

E eu digo que não, não virou terra de ninguém. Por aqui já existia uma lei que permitia o consumo pessoal em lugares públicos, inclusive. Essa lei proibia a produção e comercialização. Na real, desde que cheguei em Montevidéu há 6 anos atrás, todo mundo que queria fumar maconha, fumava numa boa. 

Nunca houve um passeio de domingo na rambla ou parque sem que eu visse pessoas fumando ou sentisse o cheiro de maconha no ar. As pessoas aprendem a conviver sem dramas porque sim, o uruguaio é conservador, mas de modo geral não mete o bedelho publicamente no que o outro está fazendo, sabe aquela coisa de cada um no seu quadrado? Pois é.

Jamais presenciei nenhuma - absolutamente nenhuma - confusão causada por quem estava fumando um porro, como chamam o cigarro de maconha nas bandas de cá.

E ó, uma pausa no tema sério para contar um mico que até hoje pago por aqui: confundo com uma frequência constrangedora as palavras porro e puerro (alho poró), gente! Imagina a louca na feira: un porro, por favor! Digo puerro! No, porro! Puerro? - Maldito portunhol arraigado hehe!

Outro comentário que volta e meia as pessoas de fora dizem é: agora que está escancarado todo mundo vai querer experimentar! Eu acho um pensamento até meio infantil. Quem já teve a curiosidade dificilmente se sentiu inibido pela falta de legalização. Eu du-vi-do que alguém que tinha a vontade de experimentar vai só agora fazer o registro para provar o primeiro cigarro da vida dentro da legalidade.

Eu não fumo, Pablo não fuma, temos 'x' amigos que não fumam e a vida continua igual, até agora ninguém se viu tentado nem saiu correndo desesperado para o IRCCA se registrar porque agora pode.

O propósito da lei não é incentivar todo mundo a virar maconheiro u-hu, pegar na mão do Raul e viver a sociedade alternativa. A publicidade - direta ou indireta - é expressamente vedada em qualquer meio de comunicação, não existe o incentivo e uma das finalidades da lei é justamente alertar e educar. O buraco social é mais embaixo e fica - talvez - para outro texto.

Quem quiser ampliar o conhecimento sobre a legalização da maconha no Uruguai e entender os procedimentos detalhadamente, recomendo a leitura do texto integral da lei 19.172 que regula a marihuana e seus derivados, do decreto 120/014 e todo o conteúdo do site do IRCC.

Para quem pensa em investir no mercado (não com coffee shop, obrigada, de nada) em dezembro acontece a terceira edição da Expo Cannabis, um evento com abordagens variadas que movimenta a região.

Para terminar, vou só frisar que o texto - como o blog em si - é uma opinião pessoal, o ponto de vista de uma e apenas uma pessoa que viveu esse período pré e pós legalização. Obviamente pessoas com realidades e experiências diferentes têm percepções diversas - ou não. O desafio é todo mundo respeitar todo mundo e cada escolha, né?

Abraço! :)

21 comentários

  1. Muito bom. Não é porque o alcool é leglizado que todo mundo bebe, digo o mesmo para os cigarros de tabaco.Uruguai está de parabéns pela bela iniciativa, seguindo os passos de uma politica coesa de liberdade civil invejável. Ao contrário do Brasil onde todos os dias convivemos com misérias e barbáries, onde é normal matar mas impossível moralmente fumar um cigarro de Maconha.

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    1. É isso, abaixo a hipocrisia e agora uma pergunta porque a maconha é ilegal em
      vários outros lugares?
      O Uruguai demonstrou amadurecimento e sabedoria para tratar do tema através dos seus dirigentes e do povo!! ao contrário aqui no Brasil que é essa vergonha e matança de pessoas inutilmente.

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    2. parabéns ao Uruguai que tratou o tema com sabedoria e amadurecimento através dos seus dirigentes políticos e o seu povo. Não como aqui no Brasil e em outros tantos lugares do mundo onde o combate ao uso mata pessoas e incentiva a corrupção.
      Aliás alguém poderia me responder porque a maconha é ilegal?

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    3. Engraçado todos falam da liberação da maconha .mas se um filho ou filha fumar maconha em casa não vão aceitar . Na rua pode então . Só os inteligente sabe que tudo q estar fácil será usado .um se cadastra leva p amigos provar e são poucos q usam e assume que fumam . Se viciando . O álcool vicia e trás maliciosos sempre querem comparar com álcool ditigir veículo sobre efeito de entorpecente maconha ou outros não é diferente de usar bebida alcoólica . Muitas pessoas hipócritas defendem que a desgraça da maconha e do álcool não trás consequencias .

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  2. Adorei essa postagem! Sempre fica para nós a curiosidade de como acontece no real, não só no abstrato da lei. A última vez que estive no Uruguai em 2014 achei muito parecido com qualquer cidade brasileira nesse sentido!

    Beijos Mile (não vai ter blogue de Colômbia não?hihihih)

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    1. Muito obrigada, flor!

      Eu tentei hehe, mas só rolou IG: @vivermundo

      Beijos!

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  3. Ola Mile Cardoso,
    fiquei na dúvida no seu post, você disse que há 3 formas de comprar : na farmacia,plantar em clubes e plantar em casa.
    Se o morador for sócio do clube,comprar na farmacia e plantar como o governo consegue controlar? Tem tecnologias e muitos fiscais para isso? Ou é como no Brasil existe lei e a pratica é outra?
    E se a pessoa tem cancer e precisar de mais de 40 gramas ? existe leis especiais para pessoas doentes e graves?

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    1. Olá! A pessoa nāo pode se cadastrar para comprar na farmácia e ser sócio de um clube, os cadastros se chocariam. Já plantar em casa, cada cabeça um mundo, a fiscalização nāo é intensa, ninguém nunca bateu na minha porta para ver se tenho um pé de tomate ou marihuana, sabe? Mas sempre corre o risco dos vizinhos denunciarem e aí irem averiguar.

      Não sei como é em casos específicos...

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  4. Bom, antes de mais nada deixo claro que não sou usuário de qualquer tipo de drogas ilícitas, mas a abordagem a respeito do tema teria que mudar. A política belicista adotada para conter o tráfico de drogas mostrou-se falido. Tenho quase três décadas no campo da repressão. O meus "inimigos" são os quem vendem, os quem compram e as próprias drogas ilegais. Resultado: As drogas não foram erradicadas, os traficantes não ficaram acuados, a violência não caiu, os homicídios foram para a estratosfera e quem ficou rico as custas da desgraça alheia foram os chefes do tráfico. Chego a uma simples conclusão, até dolorosa em razão de ter deixado anos da minha vida, noites não dormidas e energia desperdiçada, a liberação seria uma solução para acabar com o tráfico quebrando sua espinha dorsal que é o fator econômico. O dinheiro gasto pelo governo em repressão deveria ser gasto em prevenção, em construção de escolas, em políticas de valorização do ser humano, geração de empregos, qualificação profissional, entre outras medidas.
    Acredito que com ações de prevenção seria a melhor opção para combater o uso de drogas e apresento uma simples fórmula para as pessoas não usarem drogas: Na oferta diga: NÃO.

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  5. Excelente post! uma síntese curada e divertida! obrigada :)

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  6. oi Mile tudo bem...
    Mile penso em ir morar no Uruguay, sim tb devido a legalização só que mais ainda são as oportunidades que o mercado da cannabis pode oferecer ao mundo. Vejo pelo lado mais profissional e pessoal também, perdi meu emprego e tenho uma grana que posso usar.
    Não quero mais morar no Brasil sofri demais aqui, trabalhei a vida toda e nunca pude curti minha vida, sou formado tenho curso técnico ja fui dono do meu próprio negocio, mas, nunca consegui sair do lugar sempre sofrido. Uruguay é minha como é a parte de moradia, bairros, preços é dificil encontrar essas coisas por ai logo na minha primeira viagem estou me planejando ainda. Voce pode me dar algumas dicas.
    Abraços e sucesso Mile.

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    1. Olá Carlos! Tudo bem e vc?

      Recomendo dar uma olhada nesse texto: http://www.viveruruguay.com/2015/04/morar-montevideu-vida-uruguai.html

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  7. Olá Mile! Primeiramente parabéns pelo texto. Muito bem escrito! Gostaria de te saber se as plantações de maconha em larga escala, em fazendas, podem ser feitas em qualquer área particular (desde que aprovada pelas autoridades) ou somente em terrenos públicos previamente escolhidos pelo governo e depois licitados. Pergunto porque acredito que se o governo tivesse o poder de escolher onde essas plantações, digamos, industriais, ocorreriam, poderiam usar desse poder para desenvolver regiões mais carentes. Abs!

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  8. Olá Mile, tenho um debate inter-classe, em um curso técnico que faço no estado de São Paulo, e como tema minha sala irá a favor da legalização da maconha, gostaria de saber se diminuiu tráfico, e junto com ele a criminalidade.
    Abraços.
    Beatriz Neves, Barretos-SP

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    1. http://g1.globo.com/mundo/noticia/legalizacao-da-maconha-nao-diminuiu-trafico-no-uruguai.ghtml

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  9. Sou partidário da opinião do anônimo que postou mensagem na liberação e educação sobre as drogas. Tenho experiência profissional semelhante a dele. Confirmo que cada vez que você aumenta a repreensão às drogas, você deixa os traficantes mais rico. Acredito que a única saída é enfrentar a problema das drogas como sendo de saúde pública. Pode parecer loucura, mas sou a favor de que o Estado distribuisse todo tipo de droga. Quando o Estado souber quem é viciado, neste momento ele poderá oferecer uma ajuda.
    Hoje o percentual da violência decorrente da comercialização das drogas é altíssimo. Chutando, digo que um percentual superior a 60% dos crimes envolve drogas. É a briga pelo territôrio pars vende-la -la, é o furto ou roubo praticado pelo viciado para sustentar o vicio, é o acerto de contas entre traficante e viciado ou revendedor, é a violência decorrente do seu combate. Enfim, são inúmeras situações que envolvem drogas e terminam em atos violentos. Sem falar nos milhões que são gastos na justificativa do seu combate. Imagino que a droga possa no futuro ser distribuída em postos de saúde. Mas a experiência não pode ser fragmentada. O Estado tem que fazer o ciclo completo.
    Tem que cadastrar os viciados, distribuir as drogas, acompanha-lo no dia a dia e oferecer uma alternativa. Acredito mesmo é na educação desde a primeira infância.

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  10. Olá, uma informação importante (que talvez você não tenha) é: o tráfico de drogas diminuiu ou acabou? Como está a violência relacionada ao tráfico/traficantes? Grato.

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  11. Ótimo texto, ótimas opiniões principalmente na questão do "cada um com seu cada qual". Parabens!!

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