Sociedade da Neve: Museu do Andes em Montevidéu

Há tempos queria escrever sobre essa história no blog, mas nunca pude organizar os pensamentos com um sentido lógico que valesse a pena uma leitura. Não sei se consegui dessa vez, mas já era hora de tirar esse post do rascunho.

É que me perco num mundo de pensamentos soltos. Lembro a primeira vez que vi a cordilheira dos Andes fora dos livros de geografia da escola, tinha  21 anos e a montanha estava ali soberana, imponente, como se tivesse vida própria, uma energia difícil de explicar.

Nessa viagem eu ainda não conhecia a história dos sobreviventes do vôo 571. Quer dizer, sabia que havia ocorrido um acidente aéreo nos Andes e houveram sobreviventes, sabia que havia rolado uma história meio sinistra de canibalismo. Tinha até visto um filme esquisito baseado em fatos reais chamado Vivos

Mas efetivamente não tinha a menor noção do que era ficção ou realidade, não tinha dimensão da tragédia, resistência e superação vividas por essas pessoas.

No meu primeiro ano morando no Uruguai, encontrei um livro do namorado de título A Sociedade da Neve, folheando vi que tratava-se de relatos dos sobreviventes do vôo 571 e descobri que eles eram todos uruguaios. Um dos rapazes inclusive era filho do Carlos Paez Vilaró. 

Fiquei com aquela cara de boba, uma história que ganhou o mundo tinha origem aqui no país vizinho e eu não sabia de nada.



Curiosamente conheci os detalhes na mesma época que anunciaram na tv o documentário e o assunto se fez presente muitas vezes aqui em casa. Não sei dizer exatamente o que mais me toca nessa história, mas me impressiono e facilmente sinto um nó na garganta ou uma lágrima correndo pelo rosto enquanto leio umas páginas ou escuto alguns depoimentos.

Daí a minha surpresa quando um dia andando pela Ciudad Vieja vejo uma casa com um letreiro de Museu dos Andes 1972:

- Como assim um museu e desde quando? 

Pois é, um museu e bem novinho, aberto há pouco mais de 6 meses. Entrei, peguei informações e fiquei de voltar outro dia.


Para quem não lembra da tragédia que ficou conhecida como o "Milagre dos Andes", faço um breve resumo: no mês de outubro de 1972 um vôo fretado com 45 pessoas partiu de Montevideo com destino a Santiago, no grupo haviam jovens integrantes da equipe de rugby Old Christians Club que iam jogar uma partida na capital chilena, e também amigos e familiares destes.

Após uma parada devido ao mal tempo em Mendoza na Argentina, o avião seguiu viagem e no dia 13 de outubro caiu em meio às montanhas nevadas da cordilheira.

Com a queda 13 pessoas morreram, incluindo o piloto, co-piloto e o médico que acompanhava o grupo. As demais tiveram que enfrentar condições climáticas extremas sem equipamentos especiais para a neve e com pouquíssima comida. 

Os trabalhos de buscas tinham apoio dos 3 países envolvidos: Chile, Argentina e Uruguai, porém o avião branco em meio à neve tornava praticamente impossível o trabalho das equipes e após 8 dias as buscas foram encerradas: todos foram dados como mortos e o mais perturbador é imaginar que os sobreviventes escutaram essa notícia pelo rádio do avião.

É surreal imaginar essa cena, a pessoa ali debilitada fisicamente pelo acidente, emocionalmente destroçada pelo choque de ter sobrevivido e pelas perdas dos companheiros ao redor, totalmente perdida no meio do nada com fome, frio, sede, mantendo apenas a esperança de um resgate. E aí é anunciado que esse resgate não ocorrerá, aquela pontinha de esperança é cortada talvez mais abruptamente do que a própria queda do avião. Como seguir acreditando, como pensar num jeito de sair dali e gritar  para o mundo que eles estavam vivos?

Nesse cenário de incertezas eles foram surpreendidos por outro acidente: uma avalanche caiu sobre a fuselagem onde eles dormiam e mais 8 pessoas faleceram asfixiadas pela neve, dentre estas a última mulher sobrevivente do grupo.

A luta pela sobrevivência era diária, eles tiveram que fabricar elementos e utensílios para driblar o meio hostil, criaram alambiques, luvas e roupas com o forro dos assentos do avião para suportar o frio, uma especie de engenhoca para derreter a neve e ter água para beber, óculos para resistir à luz branca e intensa da neve e não comprometer a visão, etc.

Convencidos que já eram os únicos responsáveis pelo próprio destino, eles decidiram apostar numa expedição em busca de ajuda, três integrantes do grupo partiram rumo à civilização, ou pelo menos onde eles acreditavam que encontrariam auxilio, é que eles contavam com a informação errônea da localização dada momentos antes da queda, pensavam que já estavam do lado chileno e terminaram escolhendo o caminho mais complicado possível. 

Iniciaram uma caminhada sem nenhum recurso adequado no que diz respeito a equipamentos, roupas, acessórios, sem nenhum tipo de treinamento e a essa altura sem força física, já havia passado quase 2 meses. 

Dois meses, gente! Vivendo num terreno sem animais ou vegetação e com temperaturas entre -25 e -42 °C. Dificilmente em nossas vidas teremos a real sensação do que significa estar sob essa temperatura.

No terceiro dia de caminhada, um dos integrantes voltou para o acampamento. Os outros dois seguiram por mais 7 dias numa paisagem que colocava em cheque a viabilidade do plano: montanhas, neve e mais neve, pouca visibilidade, nenhum sinal de vida no caminho. A dupla se guiava por uma montanha que aparecia ao fundo e que se revelava sem o pico coberto de neve, nesse ponto podia haver um vale, um povoado, uma ajuda. 

Passados 10 dias de expedição, eles finalmente avistaram a figura de um homem a cavalo. Nando Parrado tentou comunicar-se, mas não conseguiu devido ao barulho do rio que os separava. O homem brilhantemente amarrou uma folha de papel e caneta numa pedra e lançou ao outro lado do rio, o uruguaio a duras penas conseguiu escrever a seguinte mensagem:
"Vengo de un avión que cayó en las montañas. Soy uruguayo. Hace 10 días que estamos caminando. Tengo un amigo herido arriba. En el avión quedan 14 personas heridas. Tenemos que salir rápido de aquí y no sabemos cómo. No tenemos comida. Estamos débiles. ¿Cuándo nos van a buscar arriba? Por favor, no podemos ni caminar. ¿Dónde estamos?"

O chileno Sergio Catalán, um homem simples do campo, entendeu a mensagem e cavalgou aproximadamente 8 horas para levar a informação ao posto de oficiais mais próximo. E aí é uma das partes que mais me emociono, um estranho cavalgar 8 horas para levar uma mensagem, ato de uma alma iluminada que apareceu na vida dessas pessoas que vinham sofrendo tanto.

A partir daí se organizou todo o resgate, as equipes recebiam o chamado incrédulas. Passaram-se 72 dias. Sobreviveram 16 pessoas. A notícia do resgate chegou a Montevideo e não sabiam ao certo se era boato, o quanto era verdade, estamos falando do início da década de 70, os meios de comunicação não eram tão velozes, num primeiro momento não sabiam exatamente os nomes dos que sobreviveram. 

É muito forte escutar os relatos das famílias sobre esse essas horas, ouvir como eles se sentiram durante esses 72 dias e o renascimento da esperança, a angústia da espera, de saber se o nome do filho estava na lista, se estavam voltando para casa e posteriormente a sabedoria para receber esses meninos e assimilar o turbilhão de emoções que se davam a todo instante. Os meninos chegaram a tempo de passar o natal em família.

Por muito tempo todos eles fizeram um pacto de silêncio em memória e respeito aos companheiros que faleceram nas montanhas, hoje detalhes da tragédia e milagre estão ao nosso alcance em forma de livros, documentários e entrevistas em programas de tv. 

Nesse link você pode assistir um dos melhores documentários com relatos dos sobreviventes (não consegui postar o vídeo diretamente no post).

E agora Montevideo conta com um espaço digno para contar essa história incrível. Pude finalmente voltar ao museu e fiquei muito feliz com o que vi. 


Primeiro ponto destacável: o museu não busca fazer um 'mini shopping vazio' da tragédia, ao contrário, desde o início você sente que há um cuidado e respeito com a verdade, com os fatos. 

Não transformam as pessoas em heróis superiores, trata-se de gente como a gente, senti a preocupação em fazer o visitante entender que houveram fragilidades, medos, erros, dúvidas. Eram meninos, jovens de classe média com seus 20 e pouquinhos anos que estavam numa viagem curta a passeio, sem equipamentos ou roupas apropriadas, sem treinamento para sobreviver em condições adversas. 

E em meio a isso, encontraram uma força enorme para seguir lutando pela vida, usaram da criatividade e inteligência para estabelecer uma sociedade e venceram. Trabalho em equipe, amizade e solidariedade foram palavras que marcaram e definiram essa trajetória.

Segundo ponto de valor: o museu não usa o tema do canibalismo como atrativo extra. Diante de uma história tão rica de luta pela vida, não faz sentido a antropofagia ser instigada ou julgada. Não faz sentido usar isso para criar polêmica, para apontar o dedo e dizer se é certo ou errado. Ocorreu e ponto. Dá-se o valor que merece, mas sem recorrer àquele mimimi típico de tablóides.

Sem dúvida é uma história que inspira e emociona, vale a pena conhecê-la mais de perto. 

Para alguns a visita ao museu é ainda um convite à reflexão, acho pouco provável terminar o passeio e não pensar em nossas próprias vidas. Estar cara a cara com um caso tão fantástico de superação por vezes nos dá a sensação de que nossos problemas não são assim tão grandes, ou então que eles podem até ser grandes e pesados, mas nós podemos escolher seguir adiante.

Para anotar na agenda 'do que fazer na Ciudad Vieja'. O museu é pequeno, vai levar mais ou menos 1h do seu dia e a entrada custa 200 pesos uruguaios, ou 20 reais bem investidos. Fica ali pertinho da Praça da Igreja Matriz.


Endereço Museu dos Andes: Calle Rincón, número 619.


 Abraço! ;)


10 comentários

  1. Nossa, que demais, que demais. Eu não sabia direito dessa história até ir te visitar aí e fiquei muito interessada. Depois que fomos ao museu, vi o filme e li muito sobre o assunto. É realmente impossível não se emocionar nem não ficar pensando nessa história. E ela é tão incrível e absurda que parece mentira! Você vê o filme e pensa: ah tá, agora tem uma avalanche. Ah tá, agora acabou a comida. Ah tá, agora o cara se machucou - parece artifício de filme, mas não, aconteceu.

    Achei o museu muito sério e como você disse, não fazem alarde da parte de antropofagia só pra chamar a atenção. Vale a pena a visita! Adorei o post!

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  2. Mile, vou comprar o livro hoje! Passei pelo museu no sábado, mas não entrei, me deu dó de não aproveitá-lo tão bem, porque sei que depois do livro tudo terá mais significado.
    Suas dicas, sempre tão justas com a riqueza do Uruguay, adoroooo!

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  3. Curioso porque a primeira vez que tive "notícia" desse livro foi quando entrei na faculdade para cursar Letras, indicação de uma professora e, na época não quis ler. Hoje, quase 3 anos depois, reencontro ele, e é incrível ver como as coisas acontecem na vida de maneira especial. Terminei de ler o post e no mesmo momento entrei no site da livraria para comprar dois, um em português e outro em espanhol para presentear um amigo uruguaio. É maravilhoso ler teu blog, a riqueza de detalhes encanta e como tu retratas o paisito da maneira que ele merece: lindamente! Obrigada por compartilhar tuas experiências, faz com que nos sintamos mais próximos do Uruguay enquanto não podemos fazer as malas e partir! Parabéns pelos textos e por escrever de maneira tão sensível e bonita!

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  4. Já conhecia esse caso. Vi o filme e depois o documentário de 2006, quando eles regressam ao local com os familiares. É quase inacreditável e deve ter sido muito difícil para eles seguir vivendo com a lembrança dos que ficaram. Em muitos momentos, devem ter se perguntado porque sobreviveram e isso certamente os impulsionou para ter uma vida com sentido.
    Seu post é mais um relato tocante dessa história de superação. Lê-lo fez o meu dia ficar mais significativo, obrigada.
    Aproveito para agradecer as suas dicas. Foram muito úteis para montar o roteiro da viagem que farei a Montevideo de 30 de agosto a 07 de setembro. Um abraço, Ana Lucia

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    1. Olá Ana Lúcia, precisando de serviços ou informações no Uruguai, entre em contato uruguias@gmail.com, boa viagem!!

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  5. Minha bela jovem, achei teu blog por acidente enquanto pesquisava a possibilidade de mudar de ares (Brasil=>Uruguai).

    Me diga, não liga todo teu blog ainda, mas você está mais restrita à area urbana ai, da capital etc, certo?

    Se possível me tire umas dúvidas:
    1) violencia: como é ai? tranquilo, pacato?
    2) exitem empregos na zona rural em abundancia? me interessaria trabalhar em fazenda esses trabalhos mais brutos, que sei que paga mais pouco...
    3) tenho uma poupança razoável no brasil e gasto pouco. com quantos pesos dá pra pagar aluguel, por gas no carro e fazer o rancho, assim por baixo mesmo tipo 2 ou 3 cestas basicas (4 pessoas na familia)?

    Abraço e sucesso. nos falaremos novamente!

    V.F.

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  6. Mile, que incrível seu texto! Estou sem palavras, muito tocada. Com certeza irei ao museu assim que chegar a MVD. Obrigada por cada palavra e dica.

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  7. "... y lo único que importa es el alma..."

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  8. Essa história me desperta curiosidade pelo choque, mas ainda não vi filme e quase comprei o livro milagre nos Andes, mas acabei não comprando. Vou assistir o documentário agora e quero ir ao museu, quando for a Montevidéu (não sei quando, mas irei).

    Beijossssssss
    ┌──»ʍi૮ђα ツ

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  9. Gostará muito de conhecer Montevideo, infelizmente devido a pandemia sei que nos próximos anos as viagens internacionais estarão restritas. Mas amo ler posts e ver vídeos que mostram essa cidade e admiro muito a história dos sobreviventes dos Andes.

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